domingo, 18 de outubro de 2020

O Covid-19 expôs os buracos no queijo suíço das estratégias de segurança do doente | #SD399


A Epidemia de Covid-19 expôs os grandes buracos existentes no queijo suíço das estratégias de segurança do doente – Entrevista a Santiago Tomás

Esta é uma entrevista ao Dr. Santiago Tomás. Pela sua clareza e lucidez neste período tão difícil para todos, decidi traduzir e aqui publicar. Recomendo a sua leitura atenta, especialmente a todos os GESTORES DE RISCO, em prol da Segurança do Doente.

ENTREVISTA

A epidemia de Covid-19 colocou o sistema de saúde à prova. O Dr. Santiago Tomás, com base na sua experiência pessoal na assistência a doentes afetados pela Covid-19, compartilha as suas reflexões sobre a situação da segurança do doente proveniente desta epidemia.

“Há vários meses que vivemos uma situação que mudou todo o paradigma da saúde, da atividade econômica e da vida social em todo o mundo. A pandemia causada pela infeção pelo vírus Covid-19 colocou todos os sistemas de saúde em tensão, sem exceção. Vivemos uma situação inusitada, com um número muito elevado de pessoas afetadas, falta de materiais de proteção e equipamentos suficientes para o atendimento dos doentes, grande necessidade de consumo de medicamentos e riscos de não fornecimento que ameaçam diversas áreas. Ao mesmo tempo, devemos agregar o pouco conhecimento que, progressivamente, vamos adquirindo sobre as características do vírus e a infeção que ele causa. Todos estes são fatores que estão a condicionar a resposta da saúde neste momento.

A tudo isto devemos somar três condições latentes que estavam ocultas aparecendo agora como uma dura realidade: em primeiro lugar, os deficits organizacionais dos sistemas de saúde, que considerávamos excelentes (e no qual acreditávamos!) e cuja gestão é responsabilidade de políticos e gestores de saúde que não conseguiram ver bem, ou subestimaram, o que estava por vir; em segundo lugar, o número de profissionais de saúde, claramente insuficientes para fazer face à pressão sanitária que aumenta dia a dia (e que há anos são “maltratados” em condições profissionais limitadas por cortes, apesar das suas reivindicações) e em cujas costas temos depositado todo o peso da batalha apesar de não terem recebido meios para se protegerem ou mesmo da própria irresponsabilidade de não se ter tomado os devidos cuidados no início da epidemia e, em terceiro lugar, o mais grave de tudo: a existência de uma população que confiava no sistema, numa sociedade de bem-estar, com uma elevada idade de sobrevivência, e que agora se encontra totalmente vulnerável, a qual não conseguimos atender nas melhores condições que merecem, e sobre a qual os médicos têm que tomar decisões eticamente muito difíceis para salvar o máximo de vidas de uma sociedade que, agora, está doente e sem recursos.

Perante este quadro, perante estes factos e condições…. podemos continuar a falar neste momento de "segurança do doente" ou "prevenção de iatrogenia?" É realmente este o momento de pensar nisso? Poderemos, quando tudo tiver passado, ou talvez apenas se acalme um pouco, voltar a falar, filosofar e pedir aos profissionais, organizações e governos, que devem continuar a desenvolver os mesmos planos estratégicos de segurança do doente em termos idênticos aos que estávamos a seguir até dezembro de 2019? Provavelmente não, provavelmente sim, ou talvez tenhamos que mudar a nossa maneira de fazer….

Nos últimos catorze anos estive envolvido com o conceito de segurança do doente, considerando-o como um pilar básico e necessário para oferecer uma assistência na saúde de qualidade, passando por várias etapas profissionais nesta área. Dada a situação atual, voltei a prestar cuidados diretos vivendo no dia a dia os problemas para atender e conseguir a cura (ou sobrevida) dos doentes infetados pelo covid19. Diariamente, ao sair do hospital, as experiências intensas vividas surgem de novo levando-me a refletir e questionar o conceito de segurança do doente, perguntando-me como teremos que enfrentá-la depois do “tsunami Covid-19” nos devastar e ter que reconstruir tudo novamente.

Deixe-me compartilhar com todos essas reflexões...

Vários ensinamentos sobre o que estávamos a fazer e como o fazíamos ficaram evidentes com este vírus.

O vírus deixou uma evidência: reprovámos no curso de Segurança do Doente.

A primeira reflexão que me passa pela cabeça é onde está o conceito de “criar uma cultura de segurança do doente nos profissionais e organizações” e “desenvolver e implementar práticas clínicas seguras”, frases que todos nós usamos e enaltecemos nas nossas discussões, mas que agora têm sido um fracasso totalmente dececionante. A infeção pelo Covid-19 é uma consequência clara do fiasco dessas mensagens e estratégias;

Consideremos a higiene das mãos como exemplo: campanhas que todas as organizações têm promovido sem sucesso, gastando bilhões de euros anualmente em todos os países, sem a coragem de avaliações regulares e mesmo sem ousar penalizar as organizações e os profissionais por não cumpri-las. Um fracasso total e absoluto. E a culpa é dos próprios profissionais, pelo não cumprimento, por não acreditarem neles... e não vamos falar da própria população. No final, descobrimos que a melhor campanha de lavagem das mãos foi desenvolvida em 2020 e foi desenhada por um vírus para que pudéssemos acreditar na sua eficácia. Agora todos nós percebemos a sua importância…. Tarde demais! Mas tudo se aprende... e nós temos uma nova oportunidade...

Outro tema de reflexão interna que corrói o meu pensamento hoje em dia é o conceito das segundas vítimas... podemos continuar a falar de "segundas vítimas" da mesma forma? E em que termos? Enquanto que as segundas vítimas (entendendo como tal os profissionais envolvidos num erro ou evento adverso e a sua repercussão psicológica, emocional e profissional), podem ser, neste momento, tanto por erros de cuidado como por tomar decisões eticamente discutíveis, forçadas pela atual situação de escassez de recursos que impõe limitações terapêuticas em determinados grupos populacionais, tendo em conta a idade e as condições clínicas anteriores, uma vez que já são conhecidas ou veem publicadas. Ou seja, risco de decisões que podem condicionar a vida de uma terceira pessoa. Esse fato leva o profissional a um trauma psicológico e talvez repercussões jurídicas, diante de ações que é obrigado a praticar contra a sua vontade. E não nos esqueçamos de mais dois fenômenos que estão a ocorrer nesta situação: por um lado, o profissional também se torna a primeira vítima ao adoecer do vírus por exposição ao risco ou falta de material suficiente, (como sejam os EPI’s), e por outro lado, as situações de stresse agudo em trabalhadores de saúde motivados pela situação extrema de trabalho, o medo de adoecer e/ou infetar os seus parentes próximos, a perda de colegas, ou a sensação de impotência, o que irá motivar - e na verdade, já surgiram iniciativas - abordagens multidisciplinares para abordar e reduzir o risco de stresse agudo.

E para onde vamos? Não sabemos, mas estão a surgir muitas questões que vão gerar debates nos próximos dias, meses e anos…. provavelmente o discurso de segurança do doente e prevenção de iatrogenias está condenado a mudar a partir de agora.

Questões não respondidas ou ações que até agora eram consideradas inconcebíveis por “afetar a segurança do doente” estão a ser realizadas com o objetivo de “salvar a vida do doente”. E a título de reflexão e perguntas, atrevo-me a enumerá-los, ainda sem resposta para muitas delas, para estudar, debater e discutir a partir da experiência adquirida nestes dias:

Qual é o papel do consentimento informado nessas condições?

Estamos a prescrever e a administrar medicamentos de forma quase experimental (antirretrovirais, interferon -β1b, tocilizumabe ...) pelo que devemos então solicitar o consentimento do doente: É correto perguntar ao doente quando ele teme pela sua vida, quando ele está sob os efeitos da hipóxia e insuficiência respiratória? O consentimento deve ser oral ou escrito? A prescrição e administração desses medicamentos é válida sem a necessidade de consentimento, como já se está a fazer em muitos casos, dada a grave situação para a qual os doentes evoluem em muitos casos?

Estamos a seguir as práticas seguras para o uso de medicamentos?

Provavelmente existe atualmente uma redução dos erros de medicação relacionados com a prescrição e administração dada a intensidade e especificidade dos tratamentos, mas também devido à sua personalização. Além disso, os protocolos e diretrizes a seguir deixam pouca margem para erros. No entanto, o relaxamento das boas práticas é detetado noutras terapias adjuvantes. Recentemente um colega afirmou que pouco lhe importava se os níveis de glicose no sangue estivessem elevados por causa dos “megabolos” de corticosteroides, pois o importante era salvar o doente da insuficiência respiratória...

Um aspeto que pode estar a ser levado em consideração em algumas áreas bem coordenadas entre o cuidado especializado e os cuidados de saúde primários é a reconciliação terapêutica. Os doentes que recebem alta com medicação anti-Covid-19 requerem a continuidade dos cuidados por parte dos cuidados de saúde primários, sendo essa reconciliação essencial. Nesse sentido, a sua implementação vem facilitando essa prática. O acompanhamento e monitorização do doente também melhorou. O papel do farmacêutico hospitalar nesta epidemia é ESSENCIAL e o seu trabalho integrado nas equipas de saúde está a ser de grande ajuda para todos os médicos. Provavelmente o maior risco neste momento está relacionado com a escassez, algumas das quais já divulgadas: midazolam, hidroxicloroquina, corticosteroides em altas doses, azitromicina ... A tentativa de profissionais de saúde e da população conhecedora do assunto através das redes sociais, para fazer stock para eventual uso pessoal em caso de contágio tem levado o Ministério a regulamentar a dispensa desse tipo de medicamento apenas em ambiente hospitalar. É eticamente repreensível quem já se abasteceu em detrimento de eventuais doentes que poderiam ter beneficiado?

Durante anos, a vacinação contra a gripe dos profissionais de saúde foi considerada uma prática segura, mas o seu grau de conformidade tem sido baixo e a sua eficácia questionada…

Quando a vacina anti-Covid-19 for descoberta e disponibilizada, os profissionais que não tiveram a doença manterão a mesma atitude? Aliás, a média de disponibilização de uma vacina para a população é de 18 meses... se a implantarmos precocemente e sem testes de segurança suficientes, estaremos a incorrer em riscos que afetariam a segurança do doente e a ética clínica?

Será uma prática segura rastrear toda a população relativamente ao covid-19?

E se o fizermos para este vírus…. por que não para outros?

Os doentes Covid-19 negativos ou não imunizados terão que ser separados em hospitais para garantir a segurança do doente?

Devemos considerar os efeitos adversos das terapias realizadas como eventos adversos ou são danos intrínsecos que não devem ser considerados iatrogénicos?

Por exemplo, polineuropatias e miopatias em doentes criticamente doentes devido a uma longa permanência na UCI, doença hepática devido a antirretrovirais, neuropatia ótica isquémica devido às posições essenciais para garantir a oxigenação, arritmias, etc.

O papel que as redes sociais estão a desempenhar, com diversas informações médicas geradas por profissionais com as melhores intenções misturada com outras de origem ou confiabilidade duvidosa, envolve também um problema de segurança do doente por induzir ações não validadas ou sem evidências científicas? Quem valida a segurança do conteúdo científico dos aplicativos médicos ou de saúde?

Estamos a potenciar o abandono do conceito de humanização do cuidado? O distanciamento e as barreiras de proteção e comunicação entre o profissional e o doente durante o internamento geram eventos adversos de ordem psicológica para o doente? Estamos a modificar a relação profissional de saúde-doente a favor de alternativas de distanciamento?

Os sistemas de notificação são realmente úteis?

O que estamos a notificar hoje em dia? Será que temos tempo para isso? ... Provavelmente esta situação de emergência sanitária mostra que os modelos de notificação elaborados até ao momento (e que têm pouca implantação entre os profissionais) também são elementos ineficazes para controlar a segurança do doente em caso de esgotamento do sistema. Talvez seja necessário desenhar novos modelos, com uma declaração rápida, breve, concisa e fácil para o profissional se quisermos manter o seu papel de ferramenta básica e ao mesmo tempo de prática segura.

Deixei para o fim falar sobre a sobrecarga do atendimento e os rácios de pessoal.

Este tem sido um tema muito debatido em todos os fóruns de segurança do doente: em que medida a sobrecarga assistencial é a causa dos problemas de segurança evidenciados ou é a desculpa na qual muitas vezes nos refugiamos para justificar o surgimento de eventos adversos? A resposta muitas vezes é difícil e isso tem-nos levado a sempre aconselhar os profissionais a adotarem o máximo de práticas seguras, para garantir que pelo menos o que deles depende e, portanto, está nas suas mãos, seja aplicado ajudando a reduzir o aparecimento de riscos. Nas atuais circunstâncias, a defesa de tais postulados torna-se mais complexa, uma vez que tornou-se claro que, em caso de emergência de saúde, a sobrecarga de atendimento torna-se um dos fatores mais importantes que colocam em risco a qualidade do atendimento.

É claro que esse conceito assumirá uma importância exponencial nos debates futuros sobre prevenção do risco na saúde, iatrogenias e segurança do doente.

Em conclusão, a epidemia de Covid-19 revelou os grandes buracos no queijo Gruyère que as estratégias de segurança do doente conhecidas e aplicadas até agora apresentam.

A teoria do queijo suíço descrita por James Reason passa a aplicar-se a si mesma, convidando-nos a modificar os modelos no futuro... porque agora estamos muito ocupados a combater a pandemia.”

Fernando Barroso
UM DIA SERÁS TU O DOENTE!
#segurancadodoente

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