domingo, 4 de abril de 2021

Sistemas de Relato de Incidentes e de Aprendizagem de Segurança do Doente - Mensagem de Sir Liam Donaldson |#SD416

Num mundo ideal, todos os incidentes e ocorrências de um serviço de saúde que causam danos ou têm o potencial de causar danos aos doentes seriam rapidamente reconhecidos e geridos de forma adequada no local onde o cuidado de saúde é prestado, por uma equipa alerta e bem informada. Eles documentariam e comunicariam cuidadosamente as suas observações. Estes profissionais ficariam entusiasmados com o seu envolvimento nesta atividade porque teriam visto muitos exemplos de como esses relatos foram usados para melhorar a segurança dos cuidados.

Os relatos de incidentes seriam revistos e analisados por uma equipa dedicada de especialistas em segurança do doente para identificar os riscos mais importantes para a segurança do doente e para coordenar investigações sistemáticas e não punitivas desses problemas. A investigação resultante seria imparcial e multidisciplinar, envolvendo conhecimentos de especialidades clínicas relevantes, mas, preferencialmente, também de disciplinas não relacionadas com a saúde que contribuem com sucesso para a redução de acidentes noutras outras áreas da segurança.

A investigação seria realizada numa atmosfera de confiança na qual a culpa e o castigo estivessem ausentes, e as ações disciplinares ou sanções penais seriam tomadas apenas em circunstâncias raras e apropriadas. A ação resultante da investigação levaria ao redesenho de políticas, procedimentos de prestação de cuidados, produtos, e a mudanças nas práticas de atendimento clínico e nos estilos de trabalho de indivíduos e equipas. Essas ações geralmente levariam à redução mensurável e sustentada do risco para doentes futuros. Alguns tipos de danos seriam totalmente eliminados. Haveria processos definidos para agregar dados e produzir análises que apontassem para as fraquezas sistêmicas e possibilitassem soluções.

No entanto, muito poucos sistemas de saúde ou unidades de saúde no mundo podem chegar perto deste nível ideal de desempenho na captura e na aprendizagem resultante de incidentes que resultam em danos evitáveis. Isso acontece por todos os tipos de razões, que vão desde uma insuficiência de líderes qualificados e apaixonados o suficiente para envolverem toda a sua força de trabalho numa busca para tornar a prestação de cuidados de saúde mais segura, a falta de transparência, o medo de ser castigado, a incapacidade dos profissionais de saúde em relatar livremente incidentes, erros, quase eventos e riscos, a incapacidade de investigar adequadamente o volume de relatórios gerados, até à fraca base de evidências sobre como reduzir os danos.

Muitos programas de segurança do doente em todo o mundo geraram expectativas muito altas sobre o impacto potencial dos relatos de incidentes e sistemas de aprendizagem. Na verdade, muitos desses programas foram estabelecidos movidos pelo raciocínio de senso comum de que "devemos aprender com as coisas que dão errado", mas não conseguiram corresponder a essa expectativa por causa da crença na inevitabilidade de que "aprenderemos com o que acontece errado". A experiência tem sido dececionante nesse aspeto, bem como em comparação com o histórico de outras indústrias de alto risco, como a indústria da aviação. Algumas instituições e organizações de saúde em todo o mundo mostraram que a análise dos incidentes de segurança do doente pode levar a melhorias na segurança, mas isso está longe de ser a norma. A maior parte da experiência de sistemas de aprendizagem e notificação de incidentes de segurança do doente ocorreu em hospitais de países desenvolvidos. Tem havido menos experiência em países menos desenvolvidos ou subdesenvolvidos e nas áreas dos cuidados de saúde primárias e saúde mental.

Há muitos desafios na tentativa de oferecer maiores benefícios a partir dos relatos de incidente de segurança do doente e sistemas de aprendizagem, mas três deles destacam-se.

Em primeiro lugar, o feedback da equipa na linha da frente em todo o mundo destaca consistentemente a dificuldade que os sistemas de saúde enfrentam para estabelecer uma cultura de segurança baseada em relatos isentos de culpa e na qual a aprendizagem é mais poderosa do que o julgamento. Muitas vezes, os indivíduos são responsabilizados mesmo quando sistemas e processos de atendimento mal projetados resultam em erros por parte de membros conscienciosos da equipa. As consequências de usar um incidente que resulta em dano ou morte para rastrear e punir uma enfermeira ou um médico são claras. Mais doentes morrerão, pois, a equipa estará com muito medo de admitir erros no futuro, nada será aprendido e a fonte de risco estará à espera da chegada do próximo doente inocente.

Em segundo lugar, os dados essenciais de muitos sistemas de notificação de incidentes de segurança do doente são os relatos feitos inicialmente por um membro da equipa, às vezes com recolha adicional de informações locais.

Portanto, a causa do incidente e as perspetivas de aprender com ele são muitas vezes uma questão de opinião local. Uma investigação multidisciplinar detalhada, incluindo contributos de especialistas, entrevistas em profundidade com os envolvidos e reconstituição dos eventos que ocorreram, é realizada de forma menos comum, embora pudesse levar a perceções muito mais profundas sobre questões sistêmicas. Isso ocorre principalmente por razões logísticas (um volume muito alto de incidentes), recursos insuficientes e falta de coordenação para reunir as pessoas certas da maneira certa.

Terceiro, o processo de obtenção de reduções sustentáveis ​​no risco e melhorias na segurança do doente raramente funciona bem. Um fator contribuinte para isto é o reconhecimento de que medidas como a emissão de novas orientações ou procedimentos, iniciativas de formação pontuais e o envio de alertas têm demonstrado, noutros ambientes de alto risco, serem estratégias de mudança relativamente fracas.

Em alguns países, os sistemas e as organizações de saúde têm procurado criar um sistema de notificação de incidentes de segurança do doente e, em seguida, estabelecer e desenvolver uma base de dados de tais incidentes que é usada para: analisar a frequência de fontes específicas de dano; descrever tendências e padrões gerais, bem como tipos específicos de incidentes; e permitir que as causas dos danos e riscos potenciais sejam explorados e sejam encontradas soluções para reduzir os riscos para os doentes. Estes sistemas e organizações de saúde talvez tenham sido mais bem-sucedidos no desenvolvimento de formas de monitorizar padrões e tendências de incidentes e na identificação de grupos de tipos de danos, bem como na identificação de novas fontes de risco para os doentes. A disseminação da aprendizagem obtida, numa base regular e rotineira, provou ser muito mais difícil. (   ).

A minha principal mensagem aos leitores deste documento é exortá-los a compreender o propósito, os pontos fortes e as limitações dos relatos de incidentes de segurança do doente. Os dados obtidos dos relatos de incidentes podem ser muito valiosos para a compreensão da escala e natureza dos danos decorrentes da prestação de cuidados de saúde, desde que as propriedades dos dados sejam revistas cuidadosamente e as conclusões sejam tiradas com cautela. O uso de sistemas de notificação de incidentes para uma verdadeira aprendizagem, a fim de alcançar reduções sustentáveis no risco e melhorias na segurança do doente, ainda está em desenvolvimento. Isso pode ser e tem sido feito, mas ainda não na escala e com a velocidade que se verifica em algumas outras indústrias de alto risco. É por isso que todos nos devemos esforçar (…).

Sir Liam Donaldson
Fonte: Patient safety incident reporting and learning systems: technical report and guidance. Geneva: World Health Organization; 2020

Fernando Barroso

UM DIA SERÁS TU O DOENTE!

#umdiaserastuodoente