sexta-feira, 5 de abril de 2019

Culpar é fácil, mas não previne Eventos Adversos (#SD345)


Em dezembro de 2017, um erro catastrófico na administração de medicação levou à morte de uma doente no Centro Médico Universitário de Vanderbilt.

Enquanto aguardava uma PET (tomografia), uma mulher de 75 anos apresentava-se ansiosa, pelo que lhe foi prescrito uma dose de um sedativo, o versed (midazolan). No entanto foi administrada uma dose de vecurônio, um bloqueador neuromuscular paralisante, em vez do sedativo prescrito, versed (midazolan).
 
Vecurônio - Versed
As acusações alegam que a enfermeira pretendia efetivamente administrar o medicamento prescrito, versed (midazolan). No entanto, a enfermeira não conseguiu encontrar o medicamento no dispensador automático de medicamentos (DAM), por isso utilizou uma função de sobreposição do sistema de segurança e digitou as primeiras duas letras da medicação que procurava “VE”, acabando por inadvertidamente retirar o vecurónio do armário.
 
Dispensador Automático de Medicamentos (DAM)
Como o vecurônio suprime a respiração normal e a doente ficou sozinha enquanto aguardava o início do teste, esta sofreu uma paragem cardiorrespiratória.
Apesar da doente ter sido reanimada, já era tarde demais para evitar a morte cerebral e, mais tarde, ela foi retirada do suporte de vida.

Esse caso foi amplamente divulgado na comunicação social como um exemplo de um incidente de segurança do doente evitável que causam dano ou matam muitos doentes, apesar dos nossos esforços para tornar a saúde mais segura.

Ao atingirmos o aniversário de 20 anos do histórico relatório do Institute of Medicine - To Err Is Human, um marco histórico do movimento de segurança do doente nos EUA, devemos humildemente reconhecer que, embora tenhamos feito muitas progressos, ainda há muito mais trabalho para fazer.

Este evento foi criminoso?
O conhecimento que temos deste evento vem somente do relatório do investigador do center for medicare & medicaid services (CMS). Com base nas descobertas do investigador, parece que várias lacunas nos processos estiveram “alinhadas” ao ponto de causar a morte da doente.

Todos os dias, são analisados eventos adversos nas organizações de saúde. A maioria dos eventos adversos (que causam dano ao doente) compartilha alguns traços comuns:
  • Os incidentes no sector de saúde quase nunca têm uma única “causa raiz”;
  • Tais eventos geralmente resultam de uma série de problemas em cascata;
  • A pessoa mais próxima do doente raramente tem toda a responsabilidade.

Criminalizar os erros humanos, tal como acusar a enfermeira que administrou o medicamento fatal de homicídio, não impedirá que outros erros aconteçam no futuro. Isso apenas fará com que este tipo de incidentes sejam ocultos, apagando muito do progresso que fizemos, ao aumentar a visibilidade dos problemas de segurança e tornando seguro falar abertamente sobre eles.
A ameaça de punição não faz nada para evitar erros que, pela sua natureza, não são cometidos com premeditação e intenção.

Olhando um pouco mais de perto 
De acordo com o relatório do investigador, a enfermeira relatou que não tinha verificado o nome do medicamento que retirou do DAM e não ficou com o doente após ter administrado aquilo que ela considerou ser o Versed (um medicamento de alerta máximo).

Vários alertas visíveis - no frasco e no monitor do DAM - foram ignorados ou não percebidos.

No entanto, esta enfermeira não é de forma alguma a primeira pessoa a cometer um erro com uma medicação de alerta máximo.
O Instituto ECRI analisou 261 eventos que envolveram bloqueadores neuromusculares e encontrou falhas comuns, incluindo o uso errado do medicamento ou dose errada, erros de prescrição, monitorização inadequada do doente após a administração e bloqueadores neuromusculares deixados sem segurança nas áreas de atendimento do doente.

O relatório do investigador cita uma análise do ISMP que afirma que “o tipo mais comum de erro com bloqueadores neuromusculares parece ser a administração errada do medicamento”.

Devemos, pois, ser cépticos relativamente a qualquer impulso de culpar apenas a enfermeira, uma vez que claramente outros já cometeram erros semelhantes.

Existem numerosos factores contribuintes no relatório do investigador que poderiam ter influenciado a Enfermeira tornando-a mais susceptível a “cortar os cantos”.

Por exemplo, no momento em que ela retirou o medicamento do ADC, ela foi distraída por uma conversa com outro profissional que ela estava a integrar.
Este evento ocorreu a 26 de Dezembro, o dia depois do Natal, um dia em que historicamente existem dificuldades com as dotações de pessoal.

Existem outros fatores que poderiam ser considerados, mas não foram discutidos no relatório.
Por exemplo, embora a decisão da enfermeira de anular o sistema de segurança do DAM para obter o medicamento tenha sido uma decisão infeliz, o relatório não discute a quantidade de vezes em que o sistema de segurança do DAM é anulado pelos Enfermeiros, todos os dias, para conseguirem acompanhar a sua carga de trabalho. Desta forma, aquilo que pode parecer um desvio incomum do sistema de segurança do DAM pode agora ser visto num contexto diferente se soubéssemos que os enfermeiros rotineiramente se sobrepõem ao sistema de segurança, por causa de problemas no fluxo de trabalho ou no próprio sistema informático do DAM.

Este incidente está repleto de factores humanos, que parece não terem sido considerados.

Principais sugestões de segurança 
O mais importante é olhar para o que podemos aprender com o relatório do incidente.

Primeiro, há várias oportunidades para melhorar a segurança ao nível organizacional relativamente aos sistemas e processos de prestação de cuidados. Por exemplo, a instituição deve decidir se o vecurônio deve estar disponível fora das salas de cirurgia e disponível a partir de um DAM (mesmo que o sistema de segurança seja anulado) sem que exista uma prescrição efetiva e uma dupla verificação.

Outro tópico a considerar neste evento é relativo aos componentes de tecnologias de informação (TI) na saúde. Neste caso o DAM foi configurado para mostrar apenas nomes de medicamentos genéricos. Assim, quando a enfermeira digitou “VE” no sistema, o vecurônio foi exibido na lista, em vez do sedativo pretendido, versed (um nome comercial).
Isso pode ter facilitado a selecção do medicamento errado.

A leitura do código de barras de medicamentos antes da administração poderia ter fornecido um aviso adicional que poderia ter interrompido a trajectória deste evento, mas a tecnologia ainda não tinha sido implementada no Serviço de Radiologia, local onde o medicamento foi administrado.

Por fim, a política de medicação de alerta máximo da organização não incluía sedativos moderados, como o midazolan (versed), e não fornecia orientações sobre como e durante quanto tempo se deve monitorizar o doente após administração.

Apesar de alguns dos erros neste triste caso implicarem a responsabilização, a criminalização de eventos adversos na área da saúde não é a resposta.

O melhor que podemos fazer é tomar medidas para impedir que o mesmo evento volte a acontecer com outra pessoa. Há mais hipóteses de melhorar a segurança se os profissionais de saúde tiverem a certeza de que serão tratados de forma justa quando ocorrerem acidentes.

Algumas questões que deves colocar-te:
  • O local onde trabalho possui uma lista de medicamentos de alto risco?
  • Os momentos de “preparação de terapêutica” são respeitados e evitadas as distracções?
  • Se o meu serviço possui um dispensador automático de medicamentos, de que forma é garantida a formação dos profissionais, a reciclagem dessa formação e a auditoria à correta utilização e funcionamento do equipamento?
Estas são apenas algumas questões que te devem fazer reflectir sobre as práticas de segurança no teu serviço/instituição.

Este infeliz incidente é apenas um exemplo da influência negativa dos FACTORES HUMANOS na segurança dos doentes.

Vamos procurar antes os problemas nos nossos sistemas imperfeitos em vez de procurar primeiro uma pessoa conveniente para culpar.

Fernando Barroso
Texto adaptado em parte de William M. Marella


UM DIA SERÁS TU O DOENTE!
#segurancadodoente

1 comentário:

  1. Olá
    Excelente post.
    Parabéns amigo Fernando!
    Mais importante do que «apontar o dedo» é encontrar as causas....
    Cumprs
    Augusto

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