Este é um artigo de Autores Convidados e retrata um incidente de Segurança do Doente com medicamento LASA na comunidade, demonstrando como uma troca de medicação (não intencional) pode ter consequências graves.
UMA PIPETA COMO SEMPRE
Autoras - Carolina Baptista Araújo1, Carina C. Pereira1,
Ana Quelhas2
1 – IFE MGF
na USF Terras de Santa Maria; 2 – Especialista em MGF na USF Terras de Santa
Maria
Enquadramento:
O progressivo
envelhecimento da população associado ao aumento da prevalência das patologias
crónicas e à melhoria dos cuidados de saúde, tem conduzido ao aumento da
prescrição e uso de medicamentos. [1]
Neste contexto, surge
o conceito de polimedicação, definido
como a utilização de vários medicamentos, prescritos e/ou de automedicação, que
podem causar reações adversas e/ou interações medicamentosas que aumentam
consoante o número de medicamentos administrados. [2]
A população idosa, pelas suas comorbilidades
e alterações fisiológicas associadas ao envelhecimento com implicações quer na
farmacodinâmica e farmacocinética dos medicamentos, apresentam um risco aumentado de ocorrência de interações
medicamentosas e de reações adversas. [3]
Nesse sentido, o
médico de família (MF) deve ter especial atenção na gestão da medicação crónica dos seus utentes idosos, procurando
antecipar e minorar os riscos da iatrogenia associada à polimedicação.
Descrição do caso:
Mulher, 80 anos,
de raça caucasiana, viúva, analfabeta e reformada (trabalhava com artigos de
pirotecnia e como agricultora). Pertence a uma família alargada, de classe
socioeconómica média baixa segundo a escala de Graffar.
Apresenta antecedentes pessoais de Obesidade (T82), Alterações
do metabolismo dos lípidos (T93), Diabetes não insulino-dependente (T90), Hipertensão
com complicações (K87), Insuficiência cardíaca (K77), Aterosclerose / doença
vascular periférica (K92), Doença pulmonar obstrutiva crónica (R95), Glomerulonefrite/nefrose
(U88) – Nefropatia diabética/hipertensiva, Outras doenças urinárias (U99) –
Doença renal crónica (TFG < 60mL/min) e Síndrome vertebral com irradiação de
dores (L86). Trata-se de uma utente polimedicada, fazendo habitualmente a
seguinte medicação: gliclazida 60 mg id; sitagliptina 100mg id; metformina
850mg 3id; insulina glargina 18U id; bisoprolol 5mg id; amiodarona 200mg id; furosemida
60mg id rilmenidina 1mg id; olmesartan 40mg id; ticlodipina 250mg id; sinvastatina
20mg id; bioflavonóides 500mg; indacaterol 300µg id e citicolina 100 mg/ml 1
pipeta id.
A 19 de
fevereiro de 2015, a utente recorreu ao Serviço de Urgência (SU) do hospital de
referência por um quadro de cefaleias com início súbito por volta das 22h30
associado a disartria e elevação tensional (tensão arterial sistólica cerca de
230mmHg no domicílio).
À admissão no
SU, a utente apresentava-se sonolenta e lentificada; pele e mucosa coradas e hidratadas;
cianose labial; ligeiramente polipneica, sem tiragem, com saturação de O2
(em ar ambiente) a 88%; apirética; tensão arterial de 195/80 mmHg; frequência
cardíaca de 70 bpm; auscultação cardíaca normal; auscultação pulmonar com
alguns sibilos dispersos; abdómen muito globoso que condicionava compressão do
tórax; apresentava edemas dos membros inferiores (MI), mais extensos à
esquerda, desde há anos, após erisipela; sem défices motores evidentes exceto
diminuição da mobilidade do MI esquerdo (desde há anos).
Realizou uma
gasimetria arterial em ar ambiente que revelou uma hipoxemia (PaO2
55mmHg), uma hipercapnia (PaCO2 50mmHg) compensada por um aumento do
bicarbonato (HCO3- 32,4mEq/L). O estudo analítico
realizado que revelou apenas uma diminuição da função renal (creatinina
plasmática de 1,4mg/dL e ureia de 65mg/dL) e um aumento do peptídeo
natriurético do tipo B na ordem dos 169pg/mL (alterações já conhecidas
anteriormente), e um aumento ligeiro da proteína C reativa (20,1mg/dL). De
salientar que foram pedidos marcadores de necrose miocárdica cujo resultado foi
negativo. Realizou também uma radiografia de tórax que mostrou um aumento do
índice cardiotorácico, sem alterações pleuroparenquimatosas visíveis. Para
despiste de um evento cerebrovascular agudo, foi pedido uma tomografia
computorizada crânio-encefálica que não revelou alterações.
Após realização
de estudo complementar e evolução favorável após controlo tensional durante a
permanência no SU, a utente teve alta com o diagnóstico provável de crise
hipertensiva.
Uns dias
depois, a utente volta a apresentar os mesmos sintomas, nomeadamente a
lentificação e a sensação de “fala arrastada” por parte dos familiares, sendo
pedida uma consulta domiciliária urgente
à médica de família (MF).
No dia 25 de
fevereiro, a MF visita o domicílio da utente, encontrando-a sonolenta, apesar
de facilmente despertável, e sem queixas de relevo. Apresentava-se consciente,
colaborante, orientada no espaço e no tempo. A tensão arterial medida no
domicílio era de 141/89mmHg e não apresentava alterações aparentes ao exame
neurológico.
Durante a consulta domiciliária, a utente
acaba por referir que se sentia sempre
pior depois de tomas as “gotas”. Em resposta a este comentário, a filha diz
que a mãe andaria há uns dias a insistir nesse assunto, mas que tinham ido
verificar e não tinham encontrado nenhuma diferença na medicação. A MF faz
então uma revisão da medicação
habitual da utente, apercebendo-se que uma
das embalagens presentes na sua gaveta dos medicamentos estaria trocada. A
embalagem em questão era do medicamento Tercian®
(Fig. 1), que contem o princípio
ativo ciamemazina, um fármaco antipsicótico. Esta embalagem era semelhante a um
dos medicamentos realizados habitualmente pela utente: o Trausan®,
com o princípio ativo citicolina (Fig. 2).
Fig. 1: Embalagem comercial do medicamento Tercian® (princípio ativo ciamemazina). |
Fig. 2: Embalagem comercial do medicamento Trausan® (princípio
ativo citicolina).
|
Com esta troca de medicação, que ocorrera na
farmácia aquando da compra da sua medicação habitual, a utente estaria a
fazer uma pipeta de ciamemazina por dia, justificando os sintomas
apresentados de lentificação psicomotora e disartria. Embora esta medicação não
explique a elevação tensional observada no SU, esta pode ter estado enquadrada
como uma resposta reativa ao quadro apresentado.
Após a suspensão da ciamemazina, a utente não voltou a
manifestar sintomas semelhantes.
Discussão:
Os medicamentos LASA (Look-Alike, Sound-Alike) definem-se como medicamentos com nome
ortográfico e/ou fonético e/ou aspeto semelhante que podem ser confundidos uns
com os outros, originando a troca de medicação. [4]
A Direção Geral
de Saúde (DGS) defende que instituições prestadoras de cuidados de saúde bem
como os seus profissionais são responsáveis por implementar práticas seguras no
que respeita aos medicamentos LASA, através da elaboração e divulgação interna
da a lista de medicamentos LASA disponíveis na instituição e no desenvolvimento
de estratégias ao nível do armazenamento dos medicamentos LASA, na farmácia e
nos restantes serviços, que garantam a sua separação física e correta
identificação, etc. [4]
Neste caso
clínico, apesar de os medicamentos trocados serem foneticamente diferentes, a
ortografia e o aspeto da embalagem são semelhantes (Fig.1 e 2). As
consequências clínicas desta troca de medicamentos foram evidentes e
constituíram um risco para a saúde desta utente.
Perante casos
como estes, é responsabilidade do médico de família/profissional de saúde notificar
o incidente de forma a melhorar a cultura de segurança dos doentes. Esta
notificação pode ser feita através da plataforma
NOTIFIC@, disponível através do site
da DGS em www.dgs.pt. [5]
Bibliografia:
[1] Cima CIF, Freitas RSA, Lamas MCM,
Mendes CASL, Neves AC, Fonseca C. Consumo
de medicação crónica - avaliação da prevalência no norte de portugal. Rev
Port Clin Geral 2011;27:20-7
[2] Sousa S, Pires A, Conceição C, Nascimento T, Grenha A, Braz L. Polimedicação em doentes idosos: adesão à terapêutica. Rev Port Clin Geral 2011;27:176-82
[3] Mosca C, Correia P. O medicamento no doente idoso. Acta Farm
Port 2012;2:75-81.
[4] Norma nº 020/2014 de
30/12/2014 atualizada a 14/12/2015, Medicamentos
com nome ortográfico, fonético ou aspeto semelhantes, Direção-Geral da
Saúde.
[5] Norma nº 015/2014 de 25/09/2014,
Sistema Nacional de Notificação de
Incidentes - NOTIFICA, Direção-Geral da Saúde.
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Olá
ResponderEliminarEste trabalho é a prova de que falhas com medicamentos podem ocorrer...até na farmácia onde habitualmente compramos os medicamentos.
Cumprs
Augusto