O editor da prestigiada revista científica “The Lancet” (Richard Horton) contribui com a sua visão crítica sobre a gestão da epidemia.
Ele afirma que "Nesta ocasião, os especialistas e
cientistas deram como certo alguns fatos que mais tarde se mostraram não
verdadeiros"
Nós sabíamos que isto iria acontecer.
Em 1994, Laurie Garrett publicou um livro
clarividente, um aviso. “The Coming Plague” (A próxima praga). A sua conclusão
foi: "Enquanto a raça humana luta entre si, o jogo fica do lado dos
micróbios, que ganham terreno. Eles são os nossos predadores e vencerão se nós,
Homo sapiens, não aprendermos a viver
numa aldeia global que deixe poucas oportunidades para os micróbios."
O mundo ignorou os avisos.
Ian Boyd, que foi assessor científico do governo britânico entre 2012 e 2019, lembrou recentemente que “uma simulação realizada para um cenário de uma pandemia de gripe em que cerca de 200.000 pessoas morriam, deixou-me em frangalhos”.
- Isso ajudou algum governo a agir?
“Aprendemos o que
funcionaria se tivéssemos que aplicá-lo, mas as lições aprendidas não foram
necessariamente colocadas em prática.”
As políticas de austeridade colocaram fim à ambição e ao
compromisso dos governos de proteger os seus cidadãos. O objectivo político foi o
de reduzir o papel do Estado, que passou a ter menor capacidade de
intervenção: o resultado foi deixar o país gravemente ferido. Quaisquer que
sejam as razões pelas quais as lições do Sars e as simulações de gripe não
foram aplicadas, o fato é que –resumiu Ian Boyd - "a nossa preparação era
deficiente".
A resposta global ao
Sars-CoV-2 é o maior fracasso da política científica de nossa geração. Os
sinais estavam lá. Hendraem 1994, Nipah em1998, Sars em 2003, Mers em 2012 e Ebola em 2014; todas estas grandes epidemias que afectaram os humanos foram
causadas por vírus que nascem em animais e se propagam para os humanos. O Covid-19
é causado por uma nova variante do vírus que causou a Sars.
Ninguém está surpreendido por as bandeiras vermelhas terem passado despercebidas. Poucos de nós temos a experiência de uma pandemia e todos somos parcialmente culpados por termos ignorado informações que não reflectem a nossa própria experiência do mundo. As catástrofes revelam a fraqueza da memória humana. Como se pode planear perante um evento aleatório e estranho, especialmente quando o sacrifício exigido é tão intenso?
Como argumenta a sismóloga Lucy Jones no seu livro
de 2018, The
Big Ones, "Os riscos naturais
são inevitáveis, mas o desastre não".
O primeiro dever de um governo é proteger seus cidadãos.
Os
riscos de uma pandemia podem ser medidos e quantificados. Como Garrett e o Instituto de Medicina demonstraram, os perigos de uma nova epidemia
eram conhecidos e compreendidos desde o surgimento do HIV na década de 1980.
Desde então, pelo menos 75 milhões de pessoas foram infectadas com esse vírus, e
morreram 32 milhões de pessoas.
Pode não se ter espalhado pelo planeta à velocidade do
Sars-CoV-2, mas a sua longa sombra deveria ter colocado os governos em alerta
para que fossem tomadas as medidas necessárias em face do surto de um novo
vírus.
Durante uma crise, é compreensível que tanto os cidadãos quanto os políticos se tornem especialistas. Mas, nesta ocasião, os especialistas, os cientistas que criaram modelos e simularam futuros possíveis, assumiram como certas algumas realidades que mais tarde se mostraram não verdadeiras.
O Reino Unido presumiu que esta pandemia se
pareceria muito com a gripe. O vírus da gripe não é benigno, o número de
pessoas que morrem de gripe a cada ano no Reino Unido varia muito, com um pico
recente de 28.330 mortes em 2014-2015, mas
a gripe não é o Covid-19.
Em contraste, a China
foi marcada pela sua experiência com a Sars.
Quando o governo chinês percebeu que existia um novo vírus em
circulação, as autoridades chinesas não recomendaram lavar as mãos, tossir mais
educadamente ou ter cuidado onde os lenços de papel eram descartados. Eles colocaram cidades inteiras em
quarentena e fecharam a economia. Como me disse um ex-secretário de saúde
inglês, os nossos cientistas sofreram um ataque de "viés cognitivo"
em face do risco médio representado pela gripe.
Talvez por isso, o comité mais importante do governo inglês nesta
crise, o recém-criado grupo consultivo de ameaças de vírus respiratórios
(Nrevtag), chegou a uma conclusão a 21 de Fevereiro de 2020, três semanas
após a Organização Mundial de Saúde ter declarado esta uma crise de emergência
de saúde pública de âmbito internacional: não se opôs à avaliação de risco
"moderado" para a saúde pública da população do Reino Unido.
Eles cometeram um
grande erro.
O fracasso em não elevar o nível de risco resultou num atraso mortal na preparação do sistema de saúde para a onda de infecções que estava a chegar.
É doloroso reler os apelos desesperados por ajuda do pessoal da linha de frente do sistema de saúde público do Reino Unido;
“O esgotamento da equipe de enfermagem nunca foi tão alto e muitas de nossas heróicas enfermeiras estão à beira de um colapso nervoso.”
“É doentio ver isto acontecer e que, de alguma forma, o país
acredite que é correto deixar alguns trabalhadores adoecerem, serem ventilados e morrerem”.
“Sinto-me como um soldado que vai para a guerra
desarmado.”
“É um suicídio.”
“Estou farto de ser chamado de herói porque, se tivesse escolha, não viria trabalhar.”
A disponibilidade e o acesso a equipamentos de protecção individual falharam terrivelmente para muitos profissionais de saúde, médicos e enfermeiras. Alguns gestores hospitalares fizeram o planeamento correto. Mas muitos não foram capazes de fornecer o equipamento de protecção necessário às suas equipas na linha de frente.
Em cada conferência de imprensa, o porta-voz do governo inglês
inclui a mesma frase: "Temos seguido
os conselhos médicos e científicos".
A frase é boa. Mas é apenas
parcialmente verdade.
Os políticos sabiam que o sistema de saúde não estava preparado. Eles sabiam que não havia capacidade suficiente para prestar cuidados intensivos perante um aumento de casos e necessidades como os actuais.
Um médico escreveu-me a dizer o seguinte: "Parece
que ninguém quer aprender com a tragédia humana da Itália, China, Espanha ... É
muito triste ... Os médicos e cientistas não conseguiram aprender uns com os
outros."
Estamos a viver no 'Antropoceno',
uma era em que a actividade humana impõe a sua influência sobre o meio ambiente.
O conceito de antropoceno evoca uma certa ideia da omnipotência humana. Mas o Covid-19 revela a surpreendente fragilidade de nossas
sociedades. Ele expôs a nossa incapacidade de cooperar, coordenar e agir em
conjunto. Talvez não sejamos capazes de controlar o reino do natural de forma
alguma. Podemos não ter a capacidade de controle que antes pensávamos ter.
Se o Covid-19 for capaz de imbuir os seres humanos com algum
grau de humildade, é possível que, afinal, acabemos por mostrando alguma recetividade
às lições desta pandemia mortal. Ou talvez voltemos a mergulhar na nossa
cultura de complacência e excepcionalidade até a próxima praga chegar. O que acontecerá
certamente.
E a história recente mostra-nos isso, e mais cedo do que tarde.
Fernando Barroso