domingo, 25 de outubro de 2015

Notificação de Incidentes – Necessitamos de uma “Cultura Justa”?

São reconhecidas as vantagens de um “Sistema de Notificação de Incidentes”.

Podemos aprender com os erros e falhas cometidos e usar essa informação para melhorar o sistema de suporte à prestação de cuidados, aumentando a segurança do doente (e dos profissionais), contribuindo para a qualidade dos cuidados de saúde.

O problema é que muitos profissionais não querem aprender, não querem mudar, não fazem sequer um pequeno esforço para compreender os objetivos de aprendizagem, mudança e melhoria contínua?

Como gestor de um sistema de notificação de incidentes, passo de forma cíclica por momentos de profundo desalento que resultam do constante fluxo de “más noticias”, contidas em cada relato.

A maioria apenas vê um “copo meio vazio”, ou continua a usar o “relato de incidente” de forma acusatória (do outro) ou como um meio de salvaguardar e justificar as suas ações, numa tentativa (por vezes descarada e evidente) de evitar qualquer penalização.

São raríssimos os relatos “calmos” e “ponderados” em que a pessoa envolvida no incidente, relata o incidente de forma objetiva, sem “ruido” acusatório ou juízos de valor, explicando o que aconteceu, e o que fez depois do incidente para mitigar o dano e prevenir a sua recorrência. Infelizmente, estes são uma minoria.
Reina o oposto e por mais que se insista, por mais que se dê formação e por mais que os planos de ação sejam dirigidos à melhoria dos sistemas e não às pessoas envolvidas, a verdade é que as más notícias continuam a chegar.

Tudo isto colide ainda com os princípios éticos e deontológicos do profissional que, chamado a gerir o processo de análise se vê confrontado com comportamentos profissionais aparentemente negligentes.

Mas que caminho seguir?

Cada vez mais tomo consciência que o caminho não pode passar apenas por nos concentrarmos exclusivamente nos sistemas de trabalho implementados, mas que temos também de abordar os comportamentos escolhidos pelos profissionais.
 
Considero que temos de abraçar a noção de “Cultura Justa” como uma necessidade de adotar uma nova abordagem.
Uma abordagem assente num modelo de “Cultura Justa” leva em consideração a responsabilidade (Individual e da Instituição) como um fator importante no momento da análise de um incidente. O comportamento individual escolhido pelos profissionais envolvidos é analisado à luz desta metodologia.
Uma “Cultura Justa” reconhece que os indivíduos não devem ser responsabilizados pelas falhas do sistema sobre os quais eles não exercem qualquer controlo.
Uma “Cultura Justa” reconhece também que muitos erros representam interações previsíveis entre as pessoas e os sistemas nos quais estão inseridos. É reconhecido que profissionais competentes cometem erros.
Uma “Cultura Justa” reconhece que, mesmo profissionais competentes vão desenvolver normas pouco saudáveis (atalhos, violações rotineiras das regras, etc.).
Mas uma “Cultura Justa” tem tolerância zero para com o comportamento negligente. Infelizmente este tipo de comportamento é mais frequente do que desejaríamos e que conseguimos provar pelos dados “oficiais”.

Explicando de uma forma muito simples, uma “Cultura Justa” classifica o comportamento do profissional envolvido num incidente em 3 categorias, atuando posteriormente em conformidade com esse comportamento.
 
1 – Erro Humano – Ação inadvertida; Inadvertidamente executar uma ação diferente da que deveria ter sido executada; falha, lapso, erro. Ação a desenvolver: Consolar.
 
2 – Comportamento de Risco – A opção por um comportamento que aumenta o risco onde este não é reconhecido; ou onde erroneamente se acredita ser justificado. Ação a desenvolver: Treinar.

3 – Comportamento Negligente – Escolha de um comportamento consciente que ignora um risco substancial e injustificável. Ação a desenvolver: Disciplinar.

O desafio é enorme, e a linha que separa cada um dos comportamentos nem sempre é clara, mas insistir teimosamente numa metodologia que apenas considera as falhas do sistema é um caminho que promove a insegurança do doente e protege os negligentes.

Doentes e profissionais devem continuar a ser defendidos das falhas dos sistemas, mas o comportamento negligente não pode continuar a ser tolerado.
Como podemos iniciar a mudança?
  1. Reconhecer o problema;
  2. Discutir o problema dentro da equipa de análise e gestão de incidentes;
  3. Criar um procedimento claro e fundamentado de suporte à metodologia, dirigido aos três tipos de comportamento, suportado e aceite formalmente pelos órgãos de gestão;
  4. Divulgar amplamente a metodologia de análise (Cultura Justa) por todos os profissionais da instituição;
  5. Aplicar a metodologia criteriosamente e ajustar/rever sempre que necessário.
 
A Segurança do Doente passa por assumirmos, todos, as nossas responsabilidades.

E tu, que opinião tens sobre esta matéria? Como encaram os profissionais da tua instituição estes assuntos? Que sugestão queres partilhar que ajude neste debate?

18 comentários:

  1. O sistema de notificação é uma ferramenta fundamental na nossa pratica diária, o problema é que na pratica não é dado o devido ênfase à sua importância. Só podemos mudar a nossa realidade se os enfermeiros da prática estiverem realmente envolvidos. Falta formação, falta visibilidade dos resultados, falta alguém no terreno a incentivar esta prática. E a dar conhecimento do sistema. Pelo menos, esta é a realidade que conheço. E eu sou uma enfermeira que está diariamente na prestação direta de cuidados. Só quero acrescentar que gostei muito do texto, muito pertinente! Obg

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  2. Olá
    Um texto que, como é hábito dizer-se, «coloca o dedo na ferida».
    Disciplinar/punir a negligência será certamente um contributo válido para a Segurança do Doente, apesar de eu entender que, no «estado em que estamos», possa ser um desincentivo na Notificação. Juntando a «isto», o «Poder de quem Administra»...
    Vamos ter, todos, que fazer escolhas....até porque não me saem da cabeça algumas das condições de um Sistema de Notificação: Confidencial....Não punitivo....
    __________
    Esta nova «linha de discussão» vai ter que ser «aberta».
    Relativamente ao anterior comentário, parece-me que mais do que Formação, o que falta é Tempo para a Formação! Cada vez mais,vejo os profissionais de Saúde menos disponíveis para disporem do seu tempo em Formação....
    Cumprs
    Augusto

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  3. Muito obrigado Fernando Barroso. O que eu tinha comentado é que concordo que existe falta de tempo para formações, no entanto, existem formações que podem ser feitas em 30' nos serviços. Além disso, os enfermeiros quando motivados investem mais facilmente em formações, abdicando do seu tempo pessoal. Mas isto é uma luta diária. A gestão do risco é uma luta diária que se faz "diariamente no terreno"

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  4. A Segurança do Doente é a Segurança do Profissional.
    A segurança do Doente é simples de implementar. Basta respeitar princípios básicos, de higiene e conforto, de controlo de infecção, princípios de assepsia básica, comunicação franca e aberta no seio da equipa... Enfim.
    O que vejo também diariamente, e que muito me custa, é que nos estamos a desligar, progressivamente do essencial - CUIDAR. Apostamos em múltiplos projectos e novos caminhos, mas depois não temos tempos para a formação no essencial.
    Temos muito que reflectir sobre estes assuntos, mas não sei se haverá tempo...
    Muito e muito obrigado pelos vossos comentários.

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  5. Olá
    Exactamente....estamos a desligar-nos do Cuidar....e a passos largos, acrescento eu!
    tenho a sensação que estamos a substituir o «nosso doente» pelo nosso PC....e isso é cada vez mais preocupante. Os números não podem ser mais importantes do que as pessoas!
    Provavelmente estará aqui um bom tema para que, no âmbito da Segurança do Doente/Empowerment do doente, sejam eles próprios, os doentes, a «pegarem» no assunto e a pugnar para os seus direitos não sejam esquecidos.
    __________________
    E a propósito de Cuidar....um problema que nos afecta a nós enfermeiros e a muitos dos nossos doentes e que, para além de outros factores, tem também na sua génese, déficits no Cuidar...Úlceras por pressão.
    Para « sensibilizar, toda a comunidade, para a prevalência deste flagelo no nosso país», vai comemorar-se no próximo dia 19 de Novembro o Dia Mundial de STOP às Úlceras por Pressão.

    http://www.sociedadeferidas.pt/documentos/Prevencao_e_Tratamento_de_Ulceras_Por_Pressao-Guia_de_Referencia_Rapido.pdf

    O Flyer alusivo ao dia:

    http://www.sociedadeferidas.pt/documentos/4a_ulceras_pressao/Stop_ulceras_por_Pressao_-_Flyer.pdf

    Cumprs
    Augusto

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    1. Meu caro Augusto.
      Não podia estar mais de acordo.
      "Temos" de arranjar forma de assinalar essa importante data por aqui...

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    2. Claro que sim. As úlceras por pressão estão cada vez mais a ser «olhadas com outros olhos» pela Tutela, sendo um dos indicadores institucionais que a ACSS trimestralmente solicita aos hospitais. Solicita e indica que os mesmos sejam publicados «no sítio da Internet». É o Despacho Nº 5739/2015 do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, publicado em 29 de Maio de 2015.
      Cumprs
      Augusto

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    3. Não sabia disso, fico agradavelmente surpreendida. Peço desculpa pela minha ignorância mas que "sítio da internet"? Muito obrigado. Cumprs Sofia

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    4. Olá Sofia
      «Sitio da Internet» é a página da Internet do respectivo hospital.
      Cumprs
      Augusto

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  6. A sério!? Vou tentar ver... Muito obrigado!
    Cumprs Sofia

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  7. Olá
    Voltei cá para partilhar uns números relativos a Notificações de Risco na Área Clínica que vi algures:
    Por cada 100 internamentos, aconteceram em média:
    9 notificações e no cômputo global, em 14 delas resultaram medidas preventivas que tiveram impacto em toda a Instituição.;
    3 quedas de doentes;
    1.5 Quase Acidentes;
    4.5 Incidentes;
    5.9 Eventos Adversos

    Que comentário vos oferece fazer relativamente a estes números?

    Cumprs
    Augusto


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  8. Cada vez mais se deve incentivar ao registo de incidentes que ocorram na prestação de cuidados. Nós costumamos afirmar, não nos interessa quem originou!(profissional), interessa-nos como, porquê, em que momento e que danos causou. Não perspectivamos um sistema de relato de incidentes sem ser aplicada a “cultura justa”.
    Não sou da opinião que nos estamos a desligar do cuidar. Pelo contrário CUIDAR! é também este tipo assumir o que de menos bem acontece.
    O lema deve ser sempre Cuidar em segurança e com qualidade.
    Não estamos a falar de números, estamos a falar de situações que aconteceram e que não deviam ter acontecido.
    Os utentes já manifestam, e bem!!, o desagrado em muitas das situações que “CONSEGUEM TER CONHECIMENTO!! E aquelas que eles nem sonham que lhes aconteceram?? Nós temos a coragem de os informar??

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    1. Olá
      Em áreas como a Segurança do doente/Notificações de Risco, os números representam a memória e, acima de tudo, a sua análise representa modo excelente para a prevenção de novos eventos.
      Cumprs
      Augusto

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    2. Obrigado Alcc pela partilha.
      Mais do que ter coragem para informar, é um imperativo moral e ético. Difícil é certo, mas esse é o caminho. E estamos a fazê-lo. No CHS até desenvolvemos um procedimento interno orientador para auxiliar os Profissionais nessa tarefa. É um caminho que tem de ser percorrido, e ainda existe muito para aprender...

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  9. Parece-me que, cada vez mais, ainda mais importante que notificar os incidentes é notificar os quase-incidentes, ou os que tendo atingido o doente não causaram dano (embora pudessem ter causado).
    A notificação dos incidentes é um passo importante, de reflexão das práticas e eventual reengenharia dos processos e procedimentos. Infelizmente quando há lesão grave, ou morte, é difícil criar o distanciamento necessário a uma análise objectiva. É fácil às equipas deixarem-se toldar pela culpa. Mesmo para quem tem o papel de analisar a situação (e não esteve directamente envolvido), a relação projectiva com o doente/família ou com os profissionais é muito fácil.
    Quando se analisa um incidente que causou dano no doente, na maior parte das vezes existiram uma série de quase incidentes, ou de incidentes sem lesão, que por isso mesmo foram desvalorizados e não foram notificados. A sua análise e a implementação de um plano de melhoria eficaz, teria permitido identificar o risco e intervir antes que um doente fosse atingido.
    A utilização de um instrumento objectivo de avaliação pró-activa do risco é outro aspecto que deve ser mais trabalhado. Algumas condições ambientais (sejam do espaço físico, dos recursos humanos ou dos procedimentos instituídos), constituem riscos que podem ser trabalhados antes que aconteça um incidente.
    Haverá sempre incidentes que escapam a todas as intervenções pró-activas. Esses deverão ser relatados, analisados e partilhados para que todos possam aprender da experiência de alguns. É importante que os profissionais tenham a percepção de que o objectivo é a aprendizagem e não a punição.
    Os processos disciplinares (caso façam sentido), devem sempre decorrer de forma independente e em momento algum a análise de um incidente deve ser utilizada para punir alguém. Mesmo numa situação limite em que se percebe que um profissional lesou deliberada, consciente e intencionalmente um doente, do ponto de vista do risco, o que interessa é saber como é que não houve mecanismos de contenção que o tivessem impedido. É evidente que o profissional terá que ser avaliado de outra forma e terão que ser tomadas outras medidas. Não chega dizer que a pessoa X não está em condições para prestar cuidados e que foi por isso que (por exemplo) administrou uma dose excessiva de um medicamento de alto risco a um doente. O que é preciso saber é porque é que esse factor não foi identificado anteriormente (o profissional foi avaliado quanto à sua capacidade física ou mental e competências profissionais?), como/porquê é que o medicamento estava ao seu alcance numa dose que poderia ser fatal, porque é que não houve dupla confirmação independente, como é que foi a monitorização do doente após a intervenção (ainda teria sido possível fazer alguma coisa?)...
    Os próprios doentes e familiares cuidadores poderiam (e deveriam) ser mais informados acerca do que notificar e como notificar. Não se trata de apresentar queixas (esse é outro instrumento) mas de alertar para riscos. Um familiar que cuida de um doente crónico apercebe-se muitas vezes de inúmeros incidentes que não são relatados e todos teríamos muito que aprender com esta visão mais próxima do doente.

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    1. Olá,
      Obrigado pelo excelente "comentário" com o qual concordo em absoluto, defendo e tento implementar diariamente.
      Obrigado pela partilha

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  10. Olá
    Obviamente que assino por baixo, relevando a importância da «Notificação do Quase...».
    Agora, na perspectiva de «quem está do lado de quem recebe a Notificação», entendo que haverá também a «obrigação» de se perceber, não só a «riqueza» deste tipo de Notificações, como também a necessidade da sua análise com a consequente introdução das adequadas medidas correctivas , pois como facilmente se percebe, o seu potencial de prevenção é enorme....
    Cumprs
    Augusto

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