domingo, 19 de maio de 2013

SISTEMA DE NOTIFICAÇÃO DE INCIDENTES - ORGANIZAÇÃO DE UMA ESTRUTURA INTERNA DE TRABALHO

SISTEMA DE NOTIFICAÇÃO DE INCIDENTES
ORGANIZAÇÃO DE UMA ESTRUTURA INTERNA DE TRABALHO

 Este é um artigo de opinião baseado na experiência diária de construção, desenvolvimento e gestão de um Sistema de Notificação de Incidentes (SNI) numa Instituição de Saúde.
Pode fazer o Download em PDF no final do Artigo.
Os Serviços de saúde e os seus Profissionais compreendem, de forma cada vez mais abrangente, a importância crucial da implementação de sistemas que permitam a notificação (voluntária e confidencial) dos incidentes e eventos adversos que ocorrem nas Instituições, permitindo desta forma a posterior aprendizagem e reformulação dos sistemas de trabalho que suportam a prestação de cuidados.

O Movimento Patient Safety (Segurança do Doente) foi colocado em marcha a nível mundial. Os Doentes possuem cada vez mais informação pelo que caminhamos para um momento em que os próprios Doentes e a Sociedade em geral exigirá que se tomem medidas concretas para que essa segurança seja efectivamente uma realidade.

Todos os estados membros estão empenhados na implementação de medidas concretas (RECOMENDAÇÃO DO CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA de 9 de Junho de 2009 sobre a segurança dos pacientes, incluindo a prevenção e o controlo de infecções associadas aos cuidados de saúde) e Portugal não é excepção.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), no seu documento WHO Draft Guidelines for Adverse Event Reporting and Learning Systems, from information to action, 2005,cuja leitura e estudo aqui se recomenda, identifica no capitulo 6 as Características de um Sistema de Notificação de Sucesso, e que são:
·         Não Punitivo – Esta é a característica mais importante. Quem notifica não deve ter medo de ser punido, ou que outros o sejam.
·         Confidencial - A identificação do trabalhador, do doente e da instituição não são revelados.
·         Independente - O sistema de notificação é independente da autoridade com poder disciplinar.
·         Análise por “especialistas” - Os incidentes são analisados por especialista que compreendem as circunstâncias clinicas e que estão treinados para reconhecer as causas sistémicas.
·         Oportuno - O incidente é rapidamente analisado e as suas conclusões rapidamente divulgadas.
·         Orientado para o Sistema - As recomendações focam-se nas mudanças do sistema, processos ou produtos, e não no desempenho individual.
·         Reactivo - Quem recebe os relatórios tem capacidade para os divulgar e implementar as suas recomendações.

Tendo em mente estas características, podemos colocar duas questões:
Como implementar, de raiz, um Sistema de Notificação de Incidentes (SNI)?
Qual a Estrutura de Suporte necessária para o seu funcionamento?

São estas duas questões que, de forma sumária, pretendemos responder com este artigo, ao longo do qual utilizaremos a terminologia da Classificação Internacional para a Segurança do Doente.

Os principais passos para conseguir implementar uma Estrutura Responsável pela Gestão de um Sistema de Notificação de Incidentes são:
a)      Obter o Apoio da Gestão de Topo;
b)      Equipa Credível e Motivada;
c)      Documentos de Orientação/Suporte ao SNI;
d)      Ferramentas e Instrumentos de Apoio;
e)      Retorno da Informação;
f)       Outros Aspectos a Considerar.

 OBTER O APOIO DA GESTÃO DE TOPO
Nenhum SNI terá hipótese de ser iniciado e desenvolvido sem o apoio e compreensão da Gestão de Topo da Instituição. Esse apoio é fundamental para obtenção dos recursos necessários e implementação de metodologias.

O envolvimento e suporte da Gestão de Topo garantem que o projecto de implementação de um SNI terá maiores hipóteses de concretização.

EQUIPA CREDÍVEL E MOTIVADA.
Esta é, talvez, a característica diferenciadora entre um sistema eficiente com potencial de crescimento e uma mera tentativa certamente destinada ao fracasso.

A equipa deverá ser multidisciplinar e estar motivada para a resolução das falhas latentes do sistema (James Reason).

Todos os elementos da equipa devem empenhar-se na tarefa de estudar continuamente a melhor forma de gerir um SNI e de garantir a análise dos incidentes notificados.

Os elementos da equipa devem ser, tanto quanto possível, profissionais com elevado reconhecimento pelos seus pares. Temos de reconhecer, desde o início, que a equipa irá trabalhar, na maioria das situações, com informação sensível (para os Profissionais e para a Instituição) e que a negociação dos planos de acção a implementar e a sua necessária concretização irão envolver processos de mudança, nem sempre fáceis de implementar e de aceitar por todas as partes interessadas.

O objectivo é garantir a Pessoa certa para o local/função certa.

DOCUMENTOS DE ORIENTAÇÃO/SUPORTE AO SNI
A Equipa constituída terá de definir, com a maior abrangência possível, a sua forma de actuação, competências e limites.

É fundamental elaborar um Regulamento Interno que contenha não só os seus princípios de actuação, mas que também defina e explicite todos os aspectos funcionais e de relacionamento (interno, institucional e externo) deste grupo de trabalho.

A comunicação, entre todos os atores de um SNI (Profissional que notifica, Equipa de Gestão do SNI, Responsáveis dos Serviços, Gestão de Topo) será uma área sensível desde o primeiro momento.

Depois de aprovado pela Gestão de Topo, toda esta informação deve ser disponibilizada de forma livre (através da Intranet, Circular Interna, etc.) a todos os profissionais da instituição. O objectivo é fazer da transparência dos processos um marco característico do SNI, factor que contribui substancialmente para a própria credibilidade de todo o sistema.

Alguns exemplos de documentação de apoio são:
·         Regulamento Interno;
·         Documento de Descrição de Funções (dos seus elementos);
·         Procedimentos, Normas ou Ordens de Trabalho;
·         Fluxogramas de Decisão.

FERRAMENTAS E INSTRUMENTOS DE APOIO
Peça fundamental num SNI, o Formulário de Notificação, deve ser pensado e criado respeitando os princípios de confidencialidade e de responsabilidade mútua por parte de todos os envolvidos no processo.

Existem opiniões divergentes (e ambas com argumentos válidos) quanto à necessidade de permitir o anonimato de quem notifica. Não farei aqui a defesa de qualquer uma das opções uma vez que o artigo se posiciona ao nível local. Ao nível Nacional, a opção será ser sempre a do anonimato do notificador.

Existem alternativas comerciais que podem ser parametrizadas (até certo ponto), mas nada impede cada instituição de criar (de raiz e com um custo reduzido) um formulário de relato de incidentes (em papel e “on-line”) utilizando apenas o programa WORD© e um programa de correio electrónico (institucional ou não).

Existem alguns exemplos a nível nacional, constituindo o Sistema de Notificação de Incidentes do Centro Hospitalar de Setúbal E.P.E. um exemplo bem-sucedido dessa opção.

Para gerir toda a informação, é necessário ainda a criação de uma Base de Dados. Também esta ferramenta pode ser desenvolvida na instituição (para tal basta ter acesso ao programa EXCEL© e alguns conhecimentos básicos sobre o programa). Esta será uma plataforma útil e indispensável para a gestão de toda a informação que o formulário de notificação vai começar a produzir, permitindo a agregação da informação e o seu tratamento estatístico.

Quer o Formulário de Notificação quer a Base de Dados devem ser construídos respeitando a terminologia da Classificação Internacional para a Segurança do Doente. Só com uma linguagem comum poderemos num futuro próximo, comparar os dados obtidos nas Instituições Nacionais, e desta forma obter um conhecimento real do perfil de incidentes que ocorrem em Portugal.

Para cada incidente notificado, a Equipa, com o envolvimento dos Responsáveis dos Serviços, terá de desenvolver uma análise do incidente, dos seus factores contribuintes, e das causas raiz que lhe deram origem.

Para o conseguir a Equipa deve optar por padronizar o registo da informação num documento –p. ex. Folha de Análise do Incidente.

O grande objectivo desta análise (e se quisermos de todo o SNI) é utilizar a informação obtida, não como um instrumento de punição, o que eliminaria qualquer hipótese de sucesso do sistema, mas como uma fonte de informação para a identificação das falhas latentes do sistema, permitindo a elaboração de um plano de acção com acções de melhoria que impeçam a repetição do incidente ou, caso este se repita, que as consequências para o Doente/Instituição/Profissionais sejam as menores possíveis.

Este é um processo de melhoria continua, sempre em evolução, aprendizagem e crescimento.

RETORNO DA INFORMAÇÃO
Qualquer SNI que não proceda à divulgação regular dos resultados das análises aos incidentes que efectua, é um sistema que tem grandes hipóteses de fracassar.

Divulgar os resultados das análises efectuadas e das medidas de melhoria alcançadas vai aumentar a confiança no SNI e potenciar o seu crescimento. O feedback é crucial para o sucesso do SNI.

Assim, e após conclusão do processo de análise, documentado na Folha de Análise do Incidente, o seu resultado deve ser transmitido aos responsáveis do Serviço onde o mesmo ocorreu, bem como àqueles que tenham interesse/influência na implementação do Plano de Acção estabelecido.

Os destinatários dessa informação são (podem variar conforme a natureza do incidente):

·         Director de Serviço, Enfermeiro Chefe (ou Técnico Responsável) e Gestor de Risco Clínico Local
                 o   do Serviço onde o incidente ocorreu.
                 o   de outros Serviços envolvidos no incidente.
      ·         Diretor/Responsável de Serviços de apoio, conforme aplicável (p.ex. Serviço de Instalações e Equipamentos; Aprovisionamento, Serviços Farmacêuticos, etc.)

Aquando do envio da informação deve ainda estar definido de que forma é informada a Gestão de Topo, assim como a partilha da informação por todos os elementos da Equipa da Gestão do SNI.

A utilização do correio eletrónico revela-se uma ferramenta ideal para esta comunicação uma vez que permite anexar a Folha de Análise do Incidente e identificar claramente os destinatários principais, e aqueles a quem se pretende apenas dar “conhecimento - CC”, permitindo ainda colocar destinatários em “BCC – confidenciais”, como por exemplo a totalidade da Equipa de Gestão do SNI, para que todos tenham um conhecimento profundo de toda a atividade do grupo.

 OUTROS ASPETOS A CONSIDERAR
A Equipa de Gestão do SNI terá ainda que dar atenção posterior a outros aspetos importantes da gestão do SNI como sejam:

·         FOLLOW-UP DA IMPLEMENTAÇÃO DOS PLANOS DE ACÇÃO – Este objetivo pode ser conseguido com a realização de reuniões de caracter anual com os Serviços, onde são auditados os Planos de Acão enviados para concretização no ano ou semestre anterior.

·         ALERTAS DE SEGURANÇA – Existem incidentes que, pela sua importância e abrangência, incluem informação que deve ser partilhada de forma transversal por toda a Instituição. Uma vez que não seria ético divulgar a todos os Serviços a Folha de Análise do Incidente, a Equipa de Gestão do SNI pode criar um Alerta individual, com informação pertinente, e sem identificar o Serviço ou os envolvidos, alertar todos os Serviços/Profissionais para as situações que possam constituir risco para Doentes e Profissionais/Instituição (p.ex.: Alerta sobre Dispositivo Médico com defeito; Alerta sobre Procedimento específico; etc.).

·         RELATÓRIOS PERIÓDICOS – Como já foi referido, o retorno e divulgação da informação é fundamental. A Equipa de Gestão do SNI deve esforçar-se para fazer da divulgação de dados estatísticos produzidos pelo SNI um hábito, por exemplo, através de uma newsletter trimestral (de preferência apenas uma folha A4), cuja informação pode ser extraída diretamente da Base de Dados, caso esta tenha sido construída com essa funcionalidade.

·         FORMAÇÃO EM SERVIÇO DOS ELOS DE LIGAÇÃO – A Equipa de Gestão do SNI terá enorme responsabilidade na formação dos seus elos de ligação nos Serviços (o nome pode variar, p. ex. Gestor de Risco Local). Fazer da formação contínua um hábito, revela-se compensador, de forma exponencial, a curto/médio prazo. A formação contínua cria ainda uma dinâmica de pertença e partilha de experiencias, importante para o crescimento coletivo.

·         AUDITORIAS – A Auditoria é uma metodologia fundamental no crescimento das Instituições. A “Auditoria Clínica é um processo de melhoria contínua, que visa a análise sistemática e crítica da qualidade de cuidados de saúde, incluindo o diagnóstico, tratamento, utilização de recursos, o resultado final e a repercussão na qualidade de vida do doente.” A Equipa de Gestão do SNI terá de assumir a implementação de Auditorias Clinicas aos seus processos internos, e à atuação dos Serviços Clínicos da Instituição no âmbito da Segurança do Doente.

·         ARTICULAÇÃO COM OUTROS GRUPOS E COMISSÕES – A colaboração com outros Grupos e Comissões já existentes ou que venham a ser criados será fundamental. Não se trata de absorver competências, mas de estabelecer importantes vias de comunicação e colaboração para um bem maior – A Segurança do Doente – utilizando o que de melhor cada um possui.

CONCLUSÃO

Implementar um Sistema de Notificação de Incidentes não é uma tarefa simples. A Cultura de Segurança da instituição determinará se essa tarefa será mais ou menos difícil de conseguir, mas não é impossível.

Conforme tem sido demonstrado, é possível implementar um SNI, assim como a sua estrutura de suporte, apenas com os recursos internos da Instituição, ficando a questão dos custos iniciais diminuída desde o início.

Portugal necessita conhecer o seu Perfil de Incidentes. Para isso a Direcção-Geral da Saúde está a dar passos importantes que permitem aceder a esse conhecimento. O Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e Eventos Adversos – SNNIEA – é já uma realidade e esperamos que seja também uma verdadeira alternativa para todas as Instituições de Saúde. Todos devemos contribuir, com a nossa participação e crítica construtiva para que tal se concretize num futuro próximo.

É urgente assumir a Segurança do Doente como uma prioridade, em todos os aspetos da prestação de cuidados. Este é um imperativo moral, ético e deontológico para todos os Profissionais de Saúde.

Com a Segurança do Doente alcançamos também a Satisfação por parte do Doente, uma significativa diminuição dos custos associados aos incidentes e uma melhor Saúde para todos.

Desejo-lhe os maiores sucessos na construção do seu Sistema de Notificação de Incidentes e Estrutura de Apoio.


Maio de 2013

Pode fazer o Download do artigo em PDF clicando AQUI.

Sugerimos a seguinte Bibliografia adicional

5 comentários:

  1. Olá
    Excelente artigo, mas...
    Como é que um sistema de notificação interno de um hospital co-habita com o Sistema Nacional de Notificação de Incidentes e Eventos Adversos da DGS?
    Fica a reflexão.
    Cumprs
    Augusto

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    Respostas
    1. Estamos a trabalhar para que o SNNIEA posso constituir um ferramenta eficiente.
      O caminho está a ser feito.
      Obrigado

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  2. Olá
    Até lá, o que se lhe oferece comentar relativamente à possibilidade de ser o Gestor do SNI de um determinado hospital a ter a responsabilidade de «verter» no SNNIEA as Notificações de Risco Clínico que receber no «seu» SNI?
    Obrigado
    Cumprs
    Augusto

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  3. Augusto, desculpa a demora na resposta.
    É minha opinião pessoal que não compete ao Gestor de Risco Local de uma Instituição "alimentar" o Sistema Nacional, até pelos riscos acrescidos de enviesamento que dai podem decorrer.
    Parece-me muito mais simples e aconselhável que a Instituição partilhe com o sistema nacional um "Conjunto Mínimo da Dados", definidos pelo Sistema Nacional, ficando a Instituição com a restante informação (Isto só é válido para as Instituições que possuem sistemas próprios).

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  4. Olá
    Obrigado Fernando pela resposta.
    Estamos de acordo até porque, no limite, poderíamos estar a retirar a confidencialidade da notificação recebida no «sistema local».

    Esse «Conjunto Mínimo de Dados definidos pelo Sistema Nacional» onde pode ser encontrado; como pode ser agilizado?
    Há tempos «falou-se» na possibilidade de o Sistema Nacional poder «beber» nos «Sistemas Locais de Notifcação». Sabe em que fase «isso» estará?

    Cumprs
    Augusto

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